Na Índia, o sistema de castas rígidas e sem mobilidade impede expressamente que indivíduos de classes sociais diferentes possam migrar entre diferentes níveis. Esse modelo trabalha em prol não apenas da manutenção da desigualdade social como também do aumento dela – uma vez que, como diria o grupo “As Meninas”, em um trecho com certo nível de genialidade filosófica, “o de cima sobe e o de baixo desce”.
Nas sociedades ocidentais, em teoria, a organização social é marcada pela possibilidade de mobilidade. Ou seja: é possível que alguém que nasceu em família pobre consiga acumular recursos e torna-se rico, e o contrário também é verdade.
Mas será mesmo?
A recente estreia cinematográfica “Triângulo da Tristeza” (Ruben Östlund, 2023) lança uma luz sobre o comportamento social, especialmente a relação entre pessoas de diferentes classes sociais. O filme é crítico, analítico, intenso, e é tão cruel quanto engraçado pela mesma razão: o realismo com que expõe os papeis sociais. Observar os personagens abastados na obra é, ao mesmo tempo, ridículo e normal.
O que dizer do casal de modelos, unidos por conveniência, e, quando juntos, imersos no mundo virtual? A cena multiplamente repetida, ao ponto de tornar-se desconfortável para quem assiste: em um cenário paradisíaco, uma moça faz poses e carões, enquanto o namorado tira fotos, de forma mecânica. Ao fim, o celular é repassado para ela, que passa os próximos minutos imersa em seleções, edições e publicações.
Pouco depois, o mesmo personagem entra em uma área restrita para funcionários, seminu e descalço, para reclamar que um membro da equipe fora visto sem camiseta enquanto trabalhava na área externa de um navio de cruzeiro.
Adiante na película, encontramos uma senhora de meia idade que resolve que gostaria de agradar uma funcionária numa postura que pode ser lida como a típica “white savior”. Ao ser retrucada, educadamente, pela funcionária constrangida, resolve que promoverá um momento de lazer mandatório a todos. Ou seja, todos do time, independentemente de sua vontade, devem trajar roupas de banho e aproveitar o lazer do cruzeiro, a fim de agradar a cliente, que, movida por sua leitura equivocada do contexto, acredita estar fazendo algo bom para os empregados.
A postura dessa última personagem que mencionei é, salvas as devidas dimensões, muito semelhante a de tantos outros personagens abastados da vida real que buscam “incluir” pessoas pobres como que para salvá-las, vincular certo senso de gratidão, ou assistencialismo. Algo como a pessoa que dá um presente para a filha da empregada, mas acha ruim se ela não usa; a pessoa que paga o almoço da faxineira, mas acha um absurdo que ela escolha o que quer comer; a pessoa que até quer comprar o produto ou serviço do negócio local (porque tem consciência social e deseja ajudar), mas só se for baratinho e se a entrega for superior a do grande player do mercado.
É esse exercício que faz com que alguém pague milhares prontamente em um item de grandes marcas e pechinche descaradamente o item da loja do bairro. Ou ainda, que aceite mansamente entregas medianas de grifes validadas por determinado ciclo social, e que seja excessivamente crítico e até abusivo em situações em que o prestador possui menor status social. Questões como essa favorecem o crescimento de uns (que muitas vezes já estão no topo) e dificultam o crescimento de outros – que mesmo dando o melhor, têm menos recursos e mais entraves para evoluir.
Observando esse movimento, chego à inevitável conclusão de que, em geral, a riqueza é corporativa. É difícil reduzir desigualdades sociais pois os ricos tendem a confiar seus recursos a outros ricos (afinal, ser rico significa a validação social do sucesso, e se há sucesso, é porque tem feito tudo certo), e quando o fazem a alguém que não está no mesmo patamar de renda, o ato vem acompanhado de tom de soberba, de caridade, de não querer ser contrariado pois, que absurdo, já é um grande favor estar aqui.
A riqueza é corporativa pois ricos tendem a ouvir, validar, favorecer e enriquecer outros ricos. Algumas vezes trata-se de um movimento inconsciente, algo movido pela inércia. Outras vezes, na grande maioria delas, arrisco dizer, é arbitrário.
“Triângulo da Tristeza” é um excelente espelho de certos recortes da sociedade contemporânea. Divertido, mas também incômodo, revoltante e indigesto. O título teve três indicações ao Oscar (Melhor Filme, Melhor Roteiro e Melhor Direção), todas merecidas, e está disponível no streaming Prime Video, da Amazon.